sábado, 28 de julho de 2012

O Redondo e o Zelo [Parte II]

     Quem apenas esbarra nele em algum elevador de nosso prédio ou em seu trabalho não sabe de sua vida pessoal. Contarei algumas coisas que são consideradas quase-confidenciais, afinal, sou uma das poucas coisas que fariam falta no dia-a-dia dele, apesar de atualmente, por estar quieta e em meu devido lugar, não lhe causar -mais- dores de cabeça: ele mora só. Vive só. Respira só. É tão isolado que as vezes tenho a sensação de que respira outro ar, vive em outra atmosfera... ou queria! Sei o quão acha deprimente acordar, trabalhar e presenciar este ciclo. Ele não nasceu aqui. Sua família é de uma cidade do interior e, apesar da pouca instrução, sempre serviram de base para que seus entes crescessem na vida. Com essa ideia, mudou-se para essa cidade há alguns anos a fim de estudar, mas mudou para este prédio há alguns poucos meses. Eu o acompanho desde outros meses, estes após sua formatura. 
     Acho curioso o modo com que a vida flui, por isso presto atenção em tudo o que acontece por aqui e por onde passo. Cada local é diferente e guarda dezenas, por vezes, centenas de pessoas também diferentes! Fico a pensar, até, que as pessoas nascem para combinarem com estes locais... ou os locais foram levantados para parecem com as pessoas?! Não sei! Em contrapartida, sei que nosso protagonista não se deixa influenciar pelo ambiente em que passa a maior parte do seu tempo. Aquela papelada, as pastas e pautas não lhe incomodavam, mas também não lhe davam prazer em serem autenticadas, organizadas e preenchidas. As horas parecem dias, os dias parecem meses e a vontade de ir para casa sempre foi maior que a disposição ao trabalho. 
     Com essa bendita animação, amor pela vida e profissão, não é difícil imaginar que ele não se importava com horários. Hoje aconteceu algo, no mínimo, curioso. Seu horário de entrada no serviço é dez horas da manhã, assim, levantava às sete e meia para tentar dar conta de fazer café e ficar apresentável, saindo de casa às nove e meia e chegando sempre pontualmente ou alguns minutos atrasado. Hoje o despertador não tocou. Levantou-se às nove horas e ao notar o enorme atraso, vestiu o mesmo terno que usa todos os dias, pegou sua pasta e correu. Entrou no elevador, desceu, não falou com o porteiro - para não perder o costume -... e correu. Saiu pela calçada esbarrando em quem, sem querer, conseguia. A criança perdeu seu sorvete, que derreteu no chão, o velhinho da rua de trás viu as folhas de seu jornal voarem e as pessoas olhavam, assustadas, para o cara estranho que corria pelas calçadas derrubando coisas. Cansou-se da euforia, parando lentamente e respirando rápido para tentar recuperar o fôlego. Olhou para o pulso esquerdo. O relógio marcava dez horas. Seu desespero, assim como as folhas do jornal, voou. Sabe-se lá para onde foi! Os passos largos deram lugar a uma longa caminhada e cada minuto a menos com os papeis, pautas e pastas lhe causavam faíscas de alegria que não eram expressadas nem com o olhar. Do outro lado da rua algo chamou sua atenção: havia um grupo de pessoas que estavam com os rostos pintados, sorrindo, falando com todos que por ali passavam, fazendo malabares e levantando placas que diziam "free hugs". Há muito tempo ele não sentia vontade de receber abraços e, quando se via obrigado a fazê-lo, não sentia ternura. Atravessou a rua e, ao se misturar às pessoas se perdeu na multidão, até que foi surpreendido com um abraço apertado. Durou minutos. Abraço é algo infinitamente mágico. Mistura a ternura carnal à emocional, expressa outros mil sentimentos, marca inícios, chegadas e partidas... abraços selam laços afetivos, momentos felizes e são capazes de fazer a mesma coisa que os poetas e fotógrafos, porém, usando a singeleza dos movimentos impulsivamente calculados, dos apertos que não machucam, do afeto que se transmite e que marca presença até em momentos tristes, sendo transformado, interpretado e sentido como cuidado. Aquele abraço era mais que isso, era o carinho que ficou no interior, a ponte que uniu um coração cinza e vários corações verdes, o calor humano quase desconhecido que cria laços, transmitido por um estranho. Assim como mudanças radicais devem acontecer lentamente, a mensagem não foi captada por inteiro, entretanto, fez algum efeito. Algo brotava em seu peito e precisava ser cultivado. Ah, se eu pudesse me fazer notável...

quarta-feira, 25 de julho de 2012

nós, passageiros

há quem olhe o passado
fixamente pelo espelho
quem reveja cicatrizes
medos e traquinices

o tempo a passar
como inseto a voar

tem quem olhe o presente
a caminhar pelas avenidas
fazendo par com horários perdidos
ou validades vencidas

o tempo a correr
como quem tem algo a perder

idealizam o futuro
que precede sua chegada em mentes férteis
fios brancos são vistos
assim como rugas e certos vícios

chega o tempo de viver
a intensidade da calmaria
de quem pouco espera da vida

domingo, 22 de julho de 2012

ao silenciar

o silêncio gritou
ensurdecendo azulejos
pás, caminhões e letreiros...
um sopro de inércia gerou

pararam as buzinas
e todos os pecados
planejados em surdina

quem quis, (ou)viu
um grito de silêncio
paralisando a cidade viril

sábado, 14 de julho de 2012

O Redondo e o Zelo [Parte I]

     Há um cara morando aqui, no sétimo andar, que vive a mercê do tecnológico, não olha para os pássaros que passam brincando diariamente e no mesmo horário em sua varanda nem vê as flores que frequentemente brotam do asfalto. Sei também que sua vida corre pelas privadas e ondas sonoras vindas pela televisão que, de tão alta e frequentemente ligada, é ouvida por toda vizinhança, assim como os latidos de seu cachorro altamente peludo.
     Levantava-se cedo diariamente – na verdade, quase não dormia -. Suas noites de sono eram, por vezes, interrompidas pelo barulho dos carros que andavam a mil por hora, o que gerava olheiras e um relacionamento sério com canecas lotadas de café durante quase todas as manhãs. Era de praxe perder a hora, vestir este mesmo terno amassado, pegar o elevador, ir correndo até seu carro e torcer para que o trânsito da avenida principal estivesse fluindo normalmente. Quando isto não acontecia, seu mau-humor e preguiça entravam em conflito para decidir entre buzinar ou não, se estressar ou não e até mesmo em retomar a possível noite mal dormida entre engarrafamento e trabalho... e que trabalho! Não é de minha competência comentar sua profissão, mas digo: é digna de admiração e, ainda assim, repleta de estresse. Talvez devido a isso sua vida cinza era aceitável. Não que me incomodasse o fato de aquele cara não receber visitas e não se preocupar comigo, mas em contrapartida, eu me preocupava com ele e nada podia fazer. Era reduzida a pó no caminho que leva à rotina, como um simples detalhe que embora pra uns fizesse diferença, tenho pura convicção que para ele, não.


Os Sofrimentos do Jovem Werther.Goethe. pág. 84 
[via grifeinumlivro.tumblr]

quarta-feira, 11 de julho de 2012

avessos

é fogo que queima a água
raio de sol que vive na nuvem
lágrima derramada dos lábios
riso proclamado pelo olhar

calor presente no extremo sul
sede que morre na escassez
palavra ativa que pede silêncio
lápis emborrachado pronto pro registro 

o incomum é compreensível 
paradoxo humanizado 
materializado
decifrável 

pólos distintos que não se atraem
vestido que não balança ao vento 
borboleta não-metamorfoseada 
eterna - e viva - mutação poética

sexta-feira, 6 de julho de 2012

verbos e nó... e nós

desprendemos os dedos
atingimos o consciente
desafogamos...
nos mantemos de pé

vomitamos verbos
que se dão pela ânsia do viver
necessidade do registro
versos que soltamos ao vento
e que se acham nos olhos

palavras nossas...
alimentam-se da vida
moram em nós
nós que não se desatam
momentos que se reconhecem

se agrada, é

se o bis contenta
se a alegria aumenta
se o errado se faz certo
e não prejudica quem está por perto
que mal há em ser feliz?